Em cumprimento da necessária transposição – parcial – das diretivas n.° 2015/847/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro e das atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, e n.° 2016/2258 do Conselho, de 6 de dezembro, relativa ao acesso às informações antibranqueamento de capitais por parte de autoridades fiscais, apresentou o Governo Proposta de Lei, com o n.º 72/XIII, recentemente aprovada na Assembleia da República, Decreto n.º 161/XIII, estabelecendo medidas de combate precisamente ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Sempre sendo de louvar a iniciativa legislativa na matéria, especialmente nos dias que correm, o presente Decreto regista um avanço significativo no regime preventivo e repressivo desta particularmente complexa, organizada e internacionalizada atividade criminosa.
Contudo, onde se lê “iniciativa legislativa” não deve ler-se toda e qualquer uma; bem-intencionada e oportuna que é, não deixa de merecer certos reparos, muito se desejando não vir a ser o passo dado maior que a perna.
Se, na maioria dos aspetos, menos teria, sem dúvida, sido mais, noutros parece o legislador ter-se ficado, a fim tomado pelo cansaço, já que, papel, esse, como é bom de ver, não lhe faltou. Aquilo que até aqui (e desde 2008 para cá – Lei n.º 25, de 5 de junho) se disse em sete capítulos, sessenta e cinco artigos e poucas dezenas de páginas – o que, atenção, também não se felicita – propõe-se agora dizer no dobro dos capítulos, em, imagine-se, cento e noventa e um artigos e três anexos, como se de uma própria codificação se tratasse.
E não é que as normas europeias nas quais assenta o imponham, pelo contrário, superando o Decreto, em larga medida, o seu pressuposto. Não deixa de ser curioso, lapso ou não, que tanto o novo artigo 24.º [número 1, alínea b), v)] como o artigo 51.º [número 2, alínea a)] excedam alguns dos limiares definidos pela União Europeia, nomeadamente a percentagem de capital social detido a partir da qual é exigida a identificação do cliente ou seu representante (a partir dos 5%, no lugar de 25%) e o período em relação ao qual devem ser prestadas informações relativas a relações de negócio anteriores (últimos sete anos, no lugar de cinco), respetivamente.
Em boa verdade, aquele que muito em breve será a “nova lei sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo”, tem tanto de extensão como de detalhe, parecendo mesmo, querendo ou não, apoderar-se de funções regulamentares que lhe são, em bom rigor, alheias. Ao passo que o Decreto atribui, ainda que genericamente, poderes de regulação às autoridades sectoriais competentes, a margem que depois deixa para o seu exercício acaba por ser muito curta ou mesmo nula.
De uma igualmente longa e alargada lista de entidades obrigadas, encontram-se estas sujeitas a mais deveres do que se receia poderem na prática cumprir, o que se faz cegamente, sem olhar às específicas realidades e dimensões que tão bem as caracterizam e por isso distinguem, preocupação manifestada, nomeadamente, pela Ordem dos Contabilistas Certificados, estes abrangidos pelas novas disposições.
Aplicando o mesmo regime a entidades financeiras e não financeiras, grandes, pequenas e médias empresas – como quem bebe da mesma fonte – não faltará incerteza e, sobretudo, ineficiência. Pois que de nada vale a teoria se não para que seja aplicada, e esta dificilmente o será. Se, de um lado, nas pequenas e médias empresas reinará a falta de capacidade para cumprir, escassos que são os recursos, de outro, nas grandes sociedades, quem sabe, a falta de vontade (dada a elevada dispersão de capitais).
A acrescer à inadequação subjetiva ergue-se pois um outro obstáculo: a insuficiência de meios que já nos é familiar, quer humanos, quer financeiros. São eles limitados para obrigações que parecem não ver limite; o mesmo se diga dos poderes. O futuro ditará o verdadeiro inimigo do regime: se o criminoso, se a própria autoridade; mais quando o primeiro quase sempre dispõe de mais e sofisticados recursos do que a última. E não dependendo esta apenas de si própria, ver-se-á ainda mais condicionada pelos pares, tanto no plano nacional como no plano internacional – neste último de sublinhar a dificuldade associada, denunciando, ao extremamente reduzido grau de transposição da IV Diretiva (a primeira que acima se refere); apenas por três Estados-Membros à presente data: a República Checa, a Áustria e a França, conforme estatística oficial da União Europeia. Cooperação além-fronteiras particularmente intrincada uma vez assente, essencialmente, no princípio da reciprocidade entre autoridades estrangeiras que, face à realidade normativa, muito certamente não partilharão dos mesmos meios, procedimentos e – pior – sentido de dever.
Da mesma forma se duvida da eficácia e coordenação da fiscalização interna, sendo, aliás, complexa e fracionada a rede, e, ao mesmo tempo, da exequibilidade de muitos dos deveres e obrigações genericamente (e sem mais) impostos a toda e qualquer entidade suscetível de envolvimento nas operações que o sistema cumpre monitorizar, independentemente da respetiva natureza. A somar à conhecida demora na justiça portuguesa, parece, lamentavelmente, a nova lei desde logo votada ao insucesso.
Na senda de tudo se querer prever, tudo se quer, também, sancionar. Mas censurável é a própria técnica legislativa adotada, que parece descurar o meio para atingir o fim. Veja-se que o número de contraordenações triplica, invertendo a regra para que antes nos questionemos que conduta não será irregular; o que não surpreende, pura e simples consequência da multiplicação de deveres a que se fez já referência.
Ainda que não fosse o número de infrações excessivo, seria-o o respetivo regime, que agora prevê a punibilidade de qualquer tentativa, o agravamento em caso de concurso, outras causas de suspensão do prazo de prescrição – período este que se estende – novas (e elevadas) categorias de coimas, novas (e amplas) sanções acessórias e ainda novas medidas cautelares destinadas a salvaguardar o processo contraordenacional, o próprio sistema ou os interessados. Sucede que esta deixa de ser a exclusiva consequência que até aqui se arriscava, prevendo-se pela primeira vez três ilícitos criminais: a divulgação ilegítima de informação, a revelação e favorecimento da descoberta de identidade e a desobediência, para os quais se comina mesmo pena de prisão. Resta saber se se justifica, se se executa, ou se surge unicamente motivado pela ânsia em contrariar o atual histórico de efetivas condenações que é, diga-se, relativamente diminuto.
Pecando por excesso face às diretivas na sua origem, acaba o Decreto simultaneamente por ficar aquém, obrigando o intérprete a alguma ginástica. São tantos os deveres e obrigações catalogados, e as correspondentes sanções, que não se percebe por que se omite o estímulo ao seu cumprimento. Se é verdade que o reformulado artigo 12.º prevê um sistema de controlo interno pelas entidades obrigadas, também o é que faltam disposições que afinal assegurem o seu funcionamento; isto sem prejuízo, como é natural, da remissão para o nosso código penal português, à parte o esforço interpretativo que sempre se poderia, e deveria querer, evitar.
Não seria de desconsiderar, por exemplo, qualquer coisa como o “artículo 31 bis” do código penal espanhol, que não só prevê expressamente a responsabilidade criminal das pessoas coletivas – ao passo que o presente Decreto apenas dispõe sobre a responsabilidade pela prática das contraordenações elencadas, esquecendo os ilícitos criminais que agora introduz – mas ainda especifica determinadas circunstâncias atenuantes dessa responsabilidade.
Por último, compreendem-se as reservas suscitadas pela Comissão Nacional de Proteção de Dados quanto às novas disposições com respeito ao tratamento de dados pessoais dos clientes visados e seus representantes, constando que, algumas delas, podem constituir restrições inadmissíveis a direitos fundamentais.
A título exemplificativo, o Governo propõe a disponibilização da informação ao público através da internet – de, como se sabe, carácter eterno e infinito – quando tal, e mais uma vez, não decorre obrigatoriamente da IV Diretiva. Por outro lado, redações menos felizes no contexto da identificação das pessoas envolvidas não neutralizam o risco de manipulação ou falsificação de documentos e com isso a adulteração da verdadeira identidade dos mesmos, frustrando assim as necessidades preventivas que lhe servem de base.
Semelhante apontamento se faz quanto ao princípio da finalidade, traduzido na limitação da utilização dos dados pessoais recolhidos para a finalidade de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Apesar de explicitado na diretiva em transposição e reproduzido no Decreto, proibindo-se o seu tratamento para quaisquer outros fins, ao mesmo tempo se autoriza o acesso pela Autoridade Tributária e Aduaneira a todos os dados tratados, aproveitando o legislador para imprimir algum cumprimento às obrigações fiscais – sem qualquer correspondência no objeto da Proposta nem no âmbito dos normativos que diz transpor.
No essencial, a iniciativa erra pela abundância e consequente imprecisão normativa, e pela desconsideração daquela que é a triste realidade. Porquanto não falte a vontade, com certeza faltarão os meios, tal será sempre a ambição desenfreada.
Como se não bastassem as fragilidades apontadas, gozam os sujeitos visados pelo Decreto de uns meros trinta dias, decorridos da data da sua publicação, para que não só se “consciencializem” mas munam do necessário à respetiva entrada em vigor – sem que esteja para já previsto qualquer regime ou período transitório – manifestamente insuficientes para a devida implementação, como alerta a Associação Portuguesa de Bancos em parecer. O que tão só se pode justificar pela obrigação de transposição para a ordem jurídica interna até ao final do passado mês de junho (a saber, até ao dia 26), vindo, portanto, já tarde a discussão, como, aliás, de costume.
Sem prejuízo de todos os erros, deseja-se que a realidade venha a demonstrar que a complexidade da lei não tolheu a sua eficácia.